quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Frei Elias Vella concede entrevista à Revista Isto É
Especial

| N° Edição: 2106 |

A igreja enfrenta seus demônios – Parte 1

O Vaticano reconhece a existência do diabo em suas fileiras. E prepara seu

exército para contra-atacar a presença do mal

João Loes e Rodrigo Cardoso


A igreja enfrenta seus demônios: o repórter João

Lóes comenta a matéria de capa da IstoÉ desta semana, sobre a presença do mal no

Vaticano
 
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O exorcista-chefe do Vaticano, Gabriele Amorth,espantou o mundo na semana passada ao declarar, alto e bom som, que “o demônioestá à solta no Vaticano”. A justificativa para tal desabafo, que macula aresidência oficial dos católicos com a fumaça do diabo, foram os inúmeros eincômodos casos de pedofilia envolvendoreligiosos e o atentado ao papa Bento XVI no Natal do ano passado.


Casos recentes não faltam para sustentar aindigesta frase do padre Amorth, que já tem 85 anos e dedicou os últimos 25 realização de 70 mil rituais de expulsão do diabo do corpo de fiéisatormentados. Na Alemanha, por exemplo, surgiram denúncias de abusos feitos contra meninos dentro do milenar coral Regensburger Domspatzen, administrado até 1994 pelo irmão do papa, Georg Ratzinger.


No Chile, um padre espanhol daCongregação de Clérigos de São Viator foi preso com 400 horas de vídeos  que continham pornografia infantil, boa parte produzida pelo próprio sacerdote. Já no Brasil, dois monsenhores e um padre da cidade de Arapiraca, Alagoas, foramacusados de abusar sexualmente de seus coroinhas. “Quando se fala de Satanásdentro do Vaticano, é de casos como esses que está se falando”, reitera oexorcista.


Para Amorth, o diabo existe, não é uma entidade subjetiva ousimbólica, e precisa ser enfrentado. E o que poderia ser tratado como um arroubomedieval em outras épocas hoje ganha força considerável com um lobby de peso: o do próprio papa Bento XVI, que acredita no demônio e defende a volta dos rituais de exorcismo.






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“Quando se fala na fumaça de Satanás no Vaticano,

é de

casos de pedofilia e violência na Igreja que está se

falando”


Padre Gabriele Amorth, exorcista-chefe do

Vaticano



O sumo pontífice quer criar um exército dos sacerdotes exterminadores de demônios pelo mundo, mas tem uma tarefa árdua pela frente. Tanto o diabo quanto os exorcistas estão fora de moda pelo menos desde o


século XX. Até mesmo entre os católicos, leigos e religiosos, que considera muito caricata e teatral a figura demoníaca e preferem subjetivar o mal,deixando-o, assim, mais palatável para o racionalismo vigente. Com o advento da psiquiatria e os avanços da medicina, muito do que se atribuía ao diabo passou a

ser explicado e remediado pela ciência.


Desvios como os dos padres do coral Regensburger Domspatzen e dos brasileiros de Arapiraca ganharam nome de sintomas psiquiátricos. Até quem se diz possuído pelo demônio já tem diagnóstico reconhecido pela quarta edição do manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais, publicado em 1994 – a pessoa seria vítima de um

“Transtorno Dissociativo Sem Outra Especificação”.


A Satanás, cuja própria existência foi colocada em dúvida, sobrou o papel de representação simbólica do mal. Enquanto isso, o ofício de exorcista, em baixa, parou de atrair seminaristas. Com o tempo, um corpo de religiosos majoritariamente ignorante no assunto se estabeleceu na hierarquia clerical.


“A quase totalidade do episcopado católico nunca fez exorcismos nem assistiu a um ritual”, acusa o padre Amorth. Também boa parte dos bispos, responsáveis pela investidura do cargo de exorcista oficial a um dos sacerdotes de suas dioceses, abandonou a obrigação. Muitos não acreditam sequer na existência do demônio.






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Bento XVI começou a tentar reverter esse quadro apartir de 2005. Mas daí a mudar a Igreja, que é um dos organismos maisburocráticos e avessos à transformação que existem, há um longo caminho. Em seus discursos e documentos, constam referências diretas a uma série de pilaresteóricos do catolicismo que ele pretende retomar.


Entre eles está, por exemplo,o reconhecimento da existência do demônio como um espírito do mal que semanifesta de forma objetiva nas atitudes dos homens. E se as ondas dessas orientações teóricas demoram para reverberar sobre a pesada estrutura clerical,nas costas dos fiéis elas parecem ter chegado com a força de um tsunami.


“Temos visto um aumento na procura por exorcismos. As pessoas estão claramente maissensíveis à influência do diabo”, afirma Ana Flora Anderson, socióloga e biblista vinculada à Cúria Metropolitana de São Paulo.


A tese é apoiada pelo frei italiano Elias Vella, autor de “O Diabo e o Exorcismo” (Editora Palavra& Prece). Ele reconhece que, entre os anos 1970 e 1990, houve uma calmarianos casos de possessão. “Hoje, os problemas demoníacos voltaram com força”,disse à ISTOÉ o religioso, que também foi exorcista. A igreja agora corre para suprir a crescente demanda, em meio a uma grave crise de vocações e uma diminuição do número de padres no mundo.









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“A Igreja precisa se organizar para capacitar

seus padres e fiscalizar melhor quem faz

exorcismos”


Padre Gabriele Nanni, exorcista

oficial da Diocese de Roma, que dá cursos para outros sacerdotes pelo

mundo




Um retrato do descompasso que há hoje entre asnecessidades dos fiéis e o despreparo do clero está sintetizado no livro “The Rite” (“O Rito”, em tradução livre), lançado em 2009 pelo jornalista americano

Matt Baglio. Repórter free lancer na Itália, ele resolveu acompanhar um padredos Estados Unidos durante um curso para formar exorcistas ministrado pelaprestigiada Pontifícia Universidade Regina Apostolorum, em Roma, vinculada aoVaticano.


“Achei estranho existir um programa de estudos como esse em pleno século XXI”, afirma. “Mas considerei ainda mais espantoso descobrir que muitosdos padres que estavam lá não tinham ideia do que era o demônio e como se fazia um exorcismo.” Baglio lembra ainda que os calouros se diziam marginalizados pelacomunidade religiosa de onde vieram por manifestar interesse por assunto tão

controverso.
PARTE


 
 
 

A igreja enfrenta seus demônios – Parte 2

O Vaticano reconhece a existência do diabo em suas fileiras. E prepara seu

exército para contra-atacar a presença do mal

João Loes e Rodrigo

Cardoso
 
 
 
O autor de “The Rite” levantou até números sobre a

atividade dos exorcistas no continente americano para confirmar a tese de como o

ritual está relegado. Segundo Baglio, deveria haver pelo menos 200 exorcistas

ativos nas Américas do Norte, Central e do Sul. Mas em 2009 esse número não

passava de 15. “Sei que mais de 95% dos supostos casos de possessão que chegam

aos padres acabam diagnosticados como desvio psiquiátrico. Mas e o resto, como

fica?”, questiona. O americano acompanhou 18 exorcismos genuínos na Itália e é

taxativo ao afirmar que, em alguns casos, a única solução é o ritual católico.

“São pessoas que sofrem demais, ninguém sabe por que, e buscam atenção

religiosa”, diz. Segundo o jornalista, boa parte dos rituais dura entre 30

minutos e 40 minutos, para não esgotar o possuído. Mas houve casos testemunhados

por ele que renderam três horas de luta com o diabo. “É física e mentalmente

exaustivo para todos os envolvidos”, admite.
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Padre Gabriele Amorth, ponta de lança do movimento

que defende a existência concreta do diabo e a importância do retorno dos

exorcismos, já está aposentado da prática dos rituais. O único exorcista oficial

em atividade na Diocese de Roma atualmente é o sacerdote italiano Gabriele

Nanni, que reforça a tese de seu antecessor. “Ele está bem velhinho, mas suas

palavras são valiosíssimas, dada a riqueza das experiências que teve com o diabo

nas décadas em que serviu como exorcista oficial do Vaticano”, afirma. Nanni,

por sua vez, se tornou exorcista oficial da Diocese de Roma em 2000 e, de cara,

acumulou a função de professor da Pontifícia Universidade Regina Apostolorum.

Entre 2000 e 2005 fez uma média de dois exorcismos por semana – ao menos 520,

todos com reconhecimento oficial. Hoje, divide seu tempo entre as aulas na

universidade e os cursos que ministra no exterior. Desde 2006, por exemplo,

visita a Cidade do México pelo menos uma vez por ano para treinar sacerdotes

locais no ritual. Mas isso não os exime da necessidade da autorização do bispo

para execução de um exorcismo. “A demanda está aumentando e a Igreja precisa se

organizar para capacitar seus padres e fiscalizar melhor quem faz o rito sem

autorização”, alerta. A parte que cabe a ele tem sido feita. Nanni visitou

vários países a convite das dioceses locais para ministrar o curso. A Igreja

Católica perdeu outro célebre exorcista oficial, o arcebispo de Lusaka Emmanuel

Milingo, excomungado depois de casar com uma coreana.
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TRADIÇÃO

Bento XVI é fiel ao

catolicismo medieval, com demônio, pecado e fidelidade �

liturgia
Ainda vai demorar para que a legião de expulsores do

mal almejada pela Santa Sé se forme. Alguns especialistas atribuem essa carência

à debandada de fiéis para algumas igrejas evangélicas, que enxotam demônios por

atacado. Enquanto isso, o católico convicto se vira como pode. Se os exorcistas

treinados por vaticanistas e aprovados por bispos não vêm, alguns sacerdotes

católicos têm atendido aos pedidos dos numerosos fiéis que imploram pelo alívio

de uma despossessão. Padre Nelson Rabelo, 89 anos, é um deles. Há 22 anos ele

administra a Igreja Sant’Ana, uma bela construção do século XVIII encravada no

centro do Rio de Janeiro. Lá, depois da missa das 8h30 das sextas-feiras e

sábados, faz orações de cura e libertação. “Vez ou outra há pessoas que gritam,

se retorcem, choram e desmaiam”, explica (leia quadro com os sinais de possessão

na página 90). Essas são levadas a uma sala onde a manifestação recebe

tratamento. Para confirmar se é um caso de possessão, o sacerdote faz várias

perguntas. Questiona quantos demônios estão no corpo, indaga seus nomes, a que

vieram e que tipo de mal esperam fazer. Algumas vezes, ouve ameaças. “A pessoa

fica fora de si. Não é ela quem fala, mas o diabo”, explica. À medida que o

exorcismo se desenrola, os malignos vão saindo aos poucos, um por um. “Uma vez

encontrei Lúcifer numa menina de 15 anos. Ele se apresentou e disse que de nada

adiantaria a minha ação. Mas, no fim, teve que sair”, conta, com ar vitorioso.

Segundo os especialistas, a maioria dos possuídos pelo diabo é formada por

púberes do sexo feminino, personalidades muito suscetíveis.
Tocadas pelo trabalho do sacerdote do Rio, duas

devotas, a advogada Ana Claudia Cavalcante e Zulmira Maria de Rezende,

escreveram o livro “Padre Nelson, o Enviado de Deus” (Editora UniverCidade).

“Ele trata todas as pessoas igualmente sem receber um centavo”, diz Ana Claudia.

A advogada conta que nos exorcismos conduzidos pelo padre, e presenciados por

ela, as pessoas possessas reviravam os olhos, arqueavam as mãos e se arrastavam

pelo chão. “Mas não ouvi mudança de tom de voz, como normalmente se vê nos

filmes.” Uma vez, o próprio demônio denunciou o objeto da casa que havia

contaminado para impedir a cura da vítima: o colchão. De outra feita, a mulher

possuída foi ao banheiro e se autoflagelou, ficando completamente ensanguentada.

Houve também o episódio em que um jovem ficou nervoso ao receber a bênção de

padre Nelson e passou a espancar todos à sua volta. Foi exorcizado e hoje

frequenta as sessões de oração.
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LIBERTAÇÃO

O ex-arcebispo de

Lusaka (Zâmbia) Emmanuel Milingo pratica exorcismo na

Itália
Apesar de reconhecer a boa vontade de trabalhos como

o de padre Nelson, a Igreja oficialmente não os aprova. “Quem exorciza sem

autorização do bispo já começa errado”, sentencia dom Hugo Cavalcante,

presidente da Sociedade Brasileira de Canonistas e porta-voz da Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Ele explica que o diabo é aquele que

semeia, entre outras coisas, a desobediência. E não há desobediência maior, no

rito do exorcismo, do que fazê-lo sem autorização superior. “O exorcista deve

ser um homem virtuoso e extremamente culto, senão o diabo, que é muito esperto,

pode enganá-lo”, explica Cavalcante. A opinião é compartilhada pelo teólogo

Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Tem que ter malandragem para lidar com o demônio”, afirma. Hoje, a Igreja não

habilita aspirantes a exorcistas com menos de 35 anos, doutorado em teologia e

conhecimento impecável da “Bíblia” (leia quadro na página 90). São exigências

criadas para evitar não só diagnósticos de possessão errados, mas também rituais

de exorcismo incompletos. “Tem demônio que finge que saiu do corpo para depois

voltar com ainda mais força”, alerta Altemeyer.
Mas como reconhecer Satanás? A cultura popular

costuma descrevê-lo como um ser animalesco, feio, com rabo e chifres, cheirando

a enxofre e com a pele avermelhada. Para os estudiosos, essa representação

surgiu no Oriente, berço da religião católica, onde o bode, que reúne as

características físicas que hoje atribuímos ao diabo, tinha função expiatória.

Naquela época, quando alguma suspeita de feitiço pairava sobre a comunidade, um

bode era solto no deserto para vagar até a morte. Nada mais natural, portanto,

que a cultura que criou esse ritual tenha atribuído características físicas

semelhantes à do animal em questão ao demônio. “Mas ele é puro espírito e não

existe de forma material”, afirma Cavalcante, da CNBB.
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“A pessoa fica fora de si. Não é ela quem fala,

mas o demônio”


Padre Nelson Rabelo, 89 anos, exorcista e pároco da Igreja Sant’Ana, no

Rio de Janeiro
A origem do diabo não está na “Bíblia”, mas foi

delineada através dos tempos por teóricos da fé. A história conta que, antes de

criar o cosmo, Deus fez os anjos. Só então ele partiu para forjar o mundo

material. Alguns anjos, porém, como puros espíritos, se opuseram à criação desse

universo material, naturalmente imperfeito e aparentemente desnecessário para

seres como eles, espirituais. Alheio às vontades dos anjos, Deus não só criou o

cosmo como foi além e fez o homem à sua imagem e semelhança. Foi a gota d’água

para a oposição se revoltar. A rebelião, sob a liderança do anjo Lúcifer, foi

repreendida por Deus, que enviou os caídos ao inferno. De lá, porém, como

demônios, eles passaram a influenciar os seres humanos. São milhões os malignos

circulando pela terra, segundo a tradição católica. “Mas somos nós que deixamos

as portas abertas para eles entrarem”, explica Altemeyer, da PUC-SP.
A relação homem e demônio é longa, segundo a

tradição cristã. Desde os primeiros seres humanos a habitar a Terra. Agraciados

com uma vida sem dor e preocupação no paraíso, Adão e Eva cederam às tentações

da serpente – uma representação do diabo – e comeram o fruto da árvore proibida.

Ambos acabaram expulsos do paraíso e marcaram o início da história humana. Outro

marco importante na trajetória do demônio na terra é a chegada de Jesus Cristo.

Ela crava a vitória divina e humana sobre o demônio, mas não o extingue. Mesmo

subjugado e sem poder diante da força de Deus, ele ainda tem influência sobre o

homem. Para quem se deixou levar pela tentação do demônio e se vê possuído por

ele, criou-se o exorcismo. “Jesus e seus apóstolos, bem como todos os cristãos

primitivos, foram exorcistas”, conta frei Elias Vella. “Era um sinal de fé”,

diz.
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Os exorcistas contemporâneos parecem trabalhar como

no princípio do catolicismo – perseguidos, com muitas dificuldades e temerosos

quanto ao futuro de seu ofício. “Meus colegas sacerdotes falam que não expulso

demônio nenhum”, conta o padre paulista Cleodon Amaral de Lima, que pratica

exorcismo há 25 anos sem investidura (leia boxe na página 92). Padre Nelson, do

Rio de Janeiro, também conhece as dificuldades do exorcista contemporâneo.

“Poucos bispos aceitam nosso trabalho”, diz o religioso, que foi expulso de duas

dioceses em Minas Gerais antes de ser acolhido no Rio de Janeiro. “Quando eu

parar com os rituais aqui na igreja, eles acabam.” Cabe ao Vaticano impedir que

isso aconteça.

Colaborou Francisco Alves Filho

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