
Nos idos dos anos 80 – século passado! – participei, em um período de um ano e
meio, de dois roubos. Não foram roubos comuns, como esses que a gente vê por
aí, mas roubos especiais, conforme conto a seguir.
Em 1979, quando a imagem de Jesus Misericordioso revelada à Irmã Faustina era,
ainda praticamente desconhecida no Brasil, ganhei de um amigo com quem servia
os pobres, no Pirambu, um santinho de papel, vindo de fora, com o belo rosto da
imagem, sob a qual se lia, em inglês: ‘Olhe para mim’. Fiquei muito
impressionada com a beleza daquele olhar e coloquei o santinho na minha
carteira para que pudesse, de fato, olhá-lo com mais freqüência. Era, para mim,
um tesouro.
No ano seguinte, minha filha recém nascida, eu estava em processo de
afastamento do serviço aos pobres, mas estava na missa na Paróquia do Cristo
Redentor, no Pirambu, na metade da longa fila da comunhão, na qual cada um
retira uma hóstia e a imerge no sangue sagrado, quando alguém bateu no meu
ombro, muito afogueado e disse:
‘Estão
roubando o teu carro!’ Fiquei entre ir comungar e interferir no roubo do carro.
Percebi, por graça de Deus, que receber Jesus uma só vez que fosse era mais
importante do que a Parati marrom do ano, que havia estacionado em frente à
Igreja, com a carteira e todos os documentos dentro. Calmamente, disse que
veria isso depois e fui comungar. Optei pelo mais importante (como queria ter
cultivado mais essa fé!).
Ao sair da missa, formou-se ao meu redor um bolo de curiosos, pois, pelo jeito,
havia-se espalhado a notícia. Quando cheguei no local, o carro estava lá.
Estavam lá, também, a bolsa, a carteira, os documentos e o pouco dinheiro que
tinha. Só me tinham levado... a pequena estampa de Jesus Misericordioso!
Algumas
testemunhas disseram que haviam sido uns ‘meninos drogados’ que haviam
arrombado o carro. Pensei nos adolescentes aditos de drogas com quem havíamos
trabalhado, no adolescente adito acompanhado pelo nosso grupo morto a paulada
pelos traficantes, nas crianças da escola que meu marido, eu e alguns casais
havíamos construído, passaram pela minha mente dezenas de rostos. Poderia ter
sido qualquer um, mas o mais provável era que não fosse nenhum deles. Eles não
fazem isso com pessoas que se colocam ao seu lado.
As pessoas ao redor davam mil sugestões: chamar a polícia, identificar os
meninos, ir procurar nos arredores. Eu, entretanto, nem ouvia. Só me vinha a
pergunta: ‘Por que será que só tiraram o santinho de Jesus Misericordioso?’
E,
enquanto dava partida no carro, rezei pedindo à misericórdia de Deus que fosse
ao alcance daqueles adolescentes que o haviam escolhido acima de tudo o que
haviam encontrado em minha bolsa e no carro, exatamente porque precisavam dele
acima de todas aquelas coisas.
No
fundo, eles haviam feito a mesma opção que eu, ao decidir comungar
tranqüilamente e só sair depois da bênção final: haviam escolhido o mais
importante. Pedi ao Senhor que os socorresse e que, como um sinal de que eles
seriam alcançados pela misericórdia de Deus, me fizesse chegar às mãos uma
outra estampa daquela, o que era dificílimo na época.
Em 1981, em Roma, durante o Congresso Mundial da RCC, a Irmã Briege McKenna
rezou por mim e profetizou uma pequena lista do que Deus queria de mim. O item
final, veio em forma de pergunta: ‘E os meus pobres? Por que você abandonou os
meus pobres?’ Foi uma facada! Teria ficado por aí se, no dia seguinte, um
missionário na Índia não tivesse me abordado enquanto eu escrevia alguma coisa
no saguão do hotel:
‘Desculpe, mas Jesus insistiu que eu lhe interrompesse para entregar-lhe algo’,
disse, enquanto manuseava um envelope grande nas mãos. ‘Trabalho em um hospital
em Bombaim, na Índia e sempre mostro isso às pessoas que estão sofrendo ou
morrendo e elas entram em grande paz. Tenho visto, também, muitas pessoas
mudarem de vida.
Trago isso sempre comigo e, sinceramente, não entendo porque Jesus manda que eu
lhe dê.’ Abriu o grande envelope e tirou de dentro o mesmo rosto, da mesma
imagem, com os mesmos dizeres da pequena estampa ‘roubada’. Só que, desta vez,
impressa em papel mais grosso, brilhoso, muito, muito bonita.
Emocionada, contei-lhe minha história e tentei, em vão, fazer com que ele
ficasse com a estampa. Ele recusou, impressionado com o sinal que aquela estampa
era para mim. Naturalmente, não caberia mais em minha carteira. Teria que
colocá-la sobre a mesa e trazê-la no coração, junto com a esperança de que o
Senhor, um dia, me fará voltar a servir os pobres, com a certeza de que os
meninos (hoje homens!) encontraram a misericórdia de Deus e a confiança
absoluta de que essa misericórdia não se rouba, porque ela se entrega, inteira
e livremente, pelos meios mais insondáveis, a quem dela precisa!
Maria
Emmir Nogueira
Publicado na Revista Shalom Maná, 2004
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